AXIOLOGIA E EDUCAÇÃO
Thiago Chagas Oliveira
Crato (CE), AGOSTO de 2011
ATENÇÃO: Elaborado para fins exclusivamente didáticos
OBSERVAÇÔES PRELIMINARES
- Axiologia: (axios: digno de ser estimado; logos: ciência, teoria) teoria dos valores em geral, especialmente dos valores morais.
- “A reflexão sobre os problemas educacionais inevitavelmente nos levará à questão dos valores”(SAVIANI, 2007, p.43).
Antes de tudo, deve-se observar que a análise sobre as relações entre valores e educação deve levar em consideração as determinações históricas, econômicas, políticas, sociais e culturais. Os gregos, por exemplo, tinham plena consciência da unidade orgânica entre ética e educação. Em conformidade com o entendimento de que a política é uma prática social voltada para o viver bem, a educação do indivíduo deveria coincidir com sua formação ética.
Sócrates, por exemplo, concebia o Estado como uma comunidade política assentada em relações de assistência recíproca e na máxima consciência do bem comum e do interesse geral. A lei, diz Platão no VII livro de A República, não existe para “deixar que cada um se volte para a atividade que lhe aprouver, mas para tirar partido dele para a união da cidade”. A perfeição política do Estado pressupõe a perfeição filosófico-ética. Eis a razão da paidéia [ideal formativo] platônica ser, fundamentalmente, a preparação do cidadão às virtudes éticas. A educação, por isso, é uma questão central para o legislador, uma vez que somente o homem virtuoso poderá ser um bom governante, ou também um bom governado, isto é, um bom cidadão.
Aristóteles, por sua vez, caracteriza o homem como um ser eminentemente social e, por isso, político. E isto em sentido preciso: uma vez que sua natureza leva-o a se associar com outros homens, Aristóteles sustenta que a expressão máxima da vida ética se concretiza na polis, como vida associada, ou seja, na vida política. O homem somente pode viver bem em associação direta com outros homens. O isolamento não faz parte do ser social do homem. O isolamento, por isso, vai contra sua natureza e só pode ser uma coisa acidental: aquele “que não consegue viver em sociedade, ou que não necessita de nada porque se basta a si mesmo, não participa do Estado; é um bruto ou uma divindade”. (p.13 – 14). Ou seja, na base da formação do Estado está a natureza do homem, que é sociável, configurada para viver na polis.
Se o indivíduo sozinho não basta a si mesmo, sua natureza e necessidades levam-no a união. A polis, por isso, como sociedade política, se funda na natureza humana, a qual não é somente instinto, mas também capacidade humana de saber viver bem com seus semelhantes. Diferentemente dos animais, que são gregários, o homem possui a capacidade de “distinguir o bem do mal, o justo do que não o é, e assim todos os sentimentos dessa ordem cuja comunicação forma exatamente a família e o Estado (P.14)”. Para Aristóteles, o homem só se configura plenamente como homem quando distingue e reconhece o verdadeiro bem, isto é, aquele político (viver bem). Desta forma, o Estado é uma associação de homens voltada não apenas para garantir a produção e a reprodução material dos indivíduos, mas também para assegurar que a organização e a unidade social se desenvolvam alicerçadas em princípios sólidos de sustentação, a saber: a justiça, a virtude e a ética (p.39).
A prática virtuosa da justiça e o ordenamento justo da polis garantem a sua produção e reprodução; garantem o viver bem, na medida em que a totalidade social é capaz de ser auto-suficiente. A educação, por isso, não pode deixar de apresentar-se como profundamente ética, na medida em que é voltada, antes de tudo, para a reprodução do bem comum, ou seja, para a assistência recíproca nas quais os indivíduos devem conviver.
Vem da Grécia, portanto, a idéia de que a educação deve responder pela tarefa de formação do homem virtuoso. Em A Política, Aristóteles fala em “a educação como prática da virtude”. E mais:
Considerando que cada família é uma parte do Estado, que as pessoas de que vimos de falar são porções da família, e, que a virtude da parte deve estar em relação com a do todo, é necessário, obrigatoriamente, que a educação das mulheres e dos filhos seja dirigida de acordo com a forma do governo, se realmente se deseja que o Estado, as crianças e as mulheres honrem a virtude. (p.35)
No século XVI, Nicolau Maquiavel inverterá radicalmente a visão grega acerca do indivíduo virtuoso. Para a fundação de um Estado, é necessário, segundo Maquiavel, que o príncipe constrinja, seja com uso da força seja com o uso das leis, a perversa, litigiosa e pérfida natureza humana, bem como saiba utilizar estrategicamente os meios necessários para conseguir seus fins. O juízo moral e religioso sobre os “meios” e sobre a política em geral são suspensos; estes são utilizados segundo os interesses e não segundo o bem ou mal. É por isso que, em Maquiavel, a política se torna uma prática autônoma.
Maquiavel propõe uma concepção da “natureza” do homem como substancialmente imóvel e não melhorável. Para ele, o elemento motivacional profundo da ação humana é a ânsia de lucro/vantagem e de poder. É por isso que no campo moral e político não existem valores determináveis e estáveis.
Os homens costumam ser ingratos, volúveis, dissimulados, covardes e ambiciosos de dinheiro; enquanto lhes proporcionas benefícios, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos, como se disse antes, desde que a necessidade dessas coisas esteja bem distante. Todavia, quando ela se aproxima, voltam-se para outra parte. (MAQUIAVEL, 1999, p.106).
No século XVII, Tomas Hobbes diz que os homens são iguais por natureza. Desta igualdade relativamente às capacidades individuais deriva a igualdade quanto à esperança de todos atingirem o mesmo fim. O problema surge quando dois homens buscam a mesma coisa. Na medida em que ela é impossível de ser gozada ao mesmo tempo (conflito de interesses), dois homens se tornam inimigos, por isso, se esforçam para destruir ou subjugar o outro (HOBBES, 2007, p.96).
Hobbes apresenta três causas principais da discórdia entre os homens: a competição, que leva os homens a atacar o outro para conseguir lucro; a segurança, para se defender; e a glória, que leva a contenda por motivos pessoais como diferenças de opinião, sinais de desprezo, subestimação das capacidades das pessoas, desrespeito à amigos e familiares, etc (p.97 – 98). Contra este estado de tensão e desconfiança, os homens devem se antecipar e subjugar todos que puder, de modo que nenhum outro ameace sua propriedade. “Esse aumento do domínio sobre os homens, sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos admitidos, obviamente” (HOBBES, 2007, p.97).
Segundo Hobbes, a natureza fez com que os homens se dissociassem uns dos outros, tornou-os “capazes de se atacar e se destruir...” (HOBBES, 2007, p.98). Hobbes chega, assim, a seguinte conseqüência:
É esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Todavia com possibilidade de escapar a ela, que reside, parcialmente, nas paixões e em sua razão. | As paixões que levam os homens preferir a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do trabalho. A razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo.
O estado de natureza se apresenta como uma contradição insolúvel. Partindo desse quadro de fragilidade contínua entre as pessoas, que faz com que os homens estejam sempre em guerra, “uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”(HOBBES, 2007, p.98), Hobbes afirma a absoluta necessidade de um poder comum e superior capaz de mediar adequadamente as relações humanas. Sem esse poder, “não há sociedade. E o que é pior do que tudo, há um constante temor e perigo de morte violenta. A vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (2007, p.98). Somente o Estado[1], enquanto construção artificial, pode regular as relações humanas: “Tendo em vista conseguir a paz e através disso sua própria conservação, os homens criaram um homem artificial, ao qual chamamos Estado...” (HOBBES, 2007, p.159).
No século XVIII, Adam Smith (1723 – 1790), com a noção de “mão invisível do mercado”, diz que no momento em que cada um age em função de seu interesse próprio realiza, ainda que de forma inconsciente, o interesse comum, de modo que o interesse geral e coletivo se manifesta como desdobramento e expansão dos interesses particulares. Nesta concepção, diz Hegel, “o fim egoísta é a base de um sistema de dependências recíprocas (...)” (1997, p.168).
A unidade orgânica entre ética e educação ecoa fortemente também no pensamento de Hegel. Em Princípios da Filosofia do Direito, Hegel sustenta que a educação envolve a superação da natureza e a conversão “da Ética” na segunda natureza do indivíduo. Na medida em que a educação é voltada para a busca da autonomia dos filhos, ou seja, para o desenvolvimento de sua consciência e liberdade, Hegel diz que o direito dos pais sobre o livre-arbítrio dos filhos é “determinado pelo fim de os manter na disciplina e de os educar”(p.159). Desenvolvida no âmbito familiar, a educação apresenta uma dupla função: tanto (i) a da proteção, do amor e da confiança, assim como a de (ii) preparar as crianças para a realidade exterior ao âmbito familiar (propedêutica). Nas palavras de Hegel:
(...) primeiro, (...) a alma vive a primeira parte da sua vida neste sentimento, no amor, na confiança e na obediência como fundamento da vida moral; tem a educação, depois, um destino negativo, do mesmo ponto de vista - o de conduzir as crianças desde a natureza imediata em que primitivamente se encontram para a independência e a personalidade livre e, por conseguinte, para a capacidade de saírem da unidade natural da família. (p.160)
Hegel via a educação como uma progressão de um estágio de unidade natural primitiva para um estágio de harmoniosa reconciliação. O ensinamento da criança é interrompido por sua percepção consciente de um mundo externo, o qual, no começo estranho, se torna cada vez mais familiar com sua crescente exploração. Suas inclinações são submetidas às normas éticas e sociais, as quais, estranhas e repressivas no início, acabam por tornar-se uma segunda natureza.
No século XIX, Marx mostrará que a ética não pode ser pensada de modo a-histórico e abstrato, mas a partir de suas determinações econômicas, políticas, ideológicas e culturais. A ética passa a ser subsumida pelos interesses do capital, do lucro. Sob o capitalismo, diz Marx, não existe uma ética universal do ser humano. Como, raciocina Marx, falar em ética numa sociedade que se ergue a partir da exploração do homem pelo homem?
[1] Para Hobbes, só as construções humanas podem ser analisadas e conhecidas (por exemplo, Deus não é uma construção humana, por isso, não pode ser conhecido). O Estado, na medida em que é uma construção humana, pode ser analisado e conhecido em toda sua inteireza.